Todos os caminhos parecem ir dar a Marinaleda. A localidade andaluza
permanece calma e aparentemente indiferente, no pico do sol abrasador da
tarde. Estão mais de 40 graus, são poucas as pessoas que se aventuram
nas ruas. A toponímia da terra cruza a Avenida da Liberdade com a Rua
Ernesto Che Guevara. O que fez esta terra de 2800 habitantes para de
repente estar nas bocas do mundo e invadida de equipas de televisão que
vão desde a chinesa e da poderosa Alemanha à omnipresente Al Jazira?
Há dias, os activistas do Sindicato Andaluz dos Trabalhadores (SAT),
capitaneados pelo alcaide de Marinaleda, Juan Manuel Sánchez Gordillo,
entraram em dois supermercados da região, carregaram uma dezena de
carrinhos com bens de primeira necessidade e saíram sem pagar. Os
produtos foram entregues a famílias que passam fome. A acção pretendia
denunciar, segundo os seus autores, o facto de as grandes superfícies
deitarem fora os produtos que não vendem numa altura que o desemprego na
região é superior a um milhão e 200 mil pessoas e a fome atinge quase
dois milhões e 200 mil espanhóis, segundo os sindicalistas.
Os activistas foram detidos pela polícia, posteriormente libertados e
acusados judicialmente. O presidente da câmara de Marinaleda e deputado
no parlamento regional da Andaluzia pela Esquerda Unida, Sánchez
Gordillo, declarou aos media que desejava abdicar da sua imunidade parlamentar para receber o mesmo tratamento que os outros.
São 20 horas. Perto da Casa do Povo, portas meias com a sede do
sindicato, as pessoas concentram-se. Está convocada uma assembleia, a
forma que em Marinaleda se resolvem todos os assuntos. Durante a tarde,
os carros com megafones convocaram as pessoas. Agora, à porta, estão uma
centena de homens a fumar. Dentro da sala abafada pelo calor já se
encontram sentadas cerca de 200 mulheres de todas as idades. Muitas
delas abanam leques. As portas da Casa do Povo têm sobre as arcadas as
inscrições, em letras de metal: “Um outro mundo é possível” e “Utopia”.
Esperam pacientemente Gordillo, que foi a Madrid, para discutirem as
marchas convocadas para a manhã seguinte. Depois da prisão dos
sindicalistas foi organizada uma “marcha de trabalhadores” que
percorrerá várias regiões da Andaluzia para conseguir espalhar como um
vírus as acções directas do sindicato. Esta é, segundo nos dizem os
habitantes de Marinaleda, uma “assembleia de luta” – existem outras para
discutir trabalho comunitário, investimentos da autarquia e todos os
assuntos que interessam aos habitantes. Esperanza del Rosario Saavedra,
teniente alcalde em Marinaleda – uma espécie de vice-presidente da
câmara –, diz-nos que a situação na Andaluzia está mal. “Há 30 anos que a
situação no mundo rural é má. Com a crise e a mecanização da
agricultura, o trabalho tornou-se ainda mais precário e ainda há mais
desemprego. A terra concentrou-se nas mãos dos grandes proprietários,
que têm como objectivo ganhar dinheiro, e não garantir emprego”. No
município vizinho de Marinaleda, Rubio, são visíveis grandes campos de
girassóis a secarem ao sol, sem terem sido aproveitados. Na terra
explicam-nos que são frequentes: são culturas subsidiadas pela União
Europeia que quase não precisam de trabalho humano e que os
proprietários recebem à cabeça, sem mesmo precisarem de colher o que foi
semeado. Uma fraude proveitosa. Diferente é a vida aqui: desde o ano de
91 que, devido a um longo processo de luta, a população de Marinaleda
tem a gestão comunitária de 1200 hectares de terra. Nesta povoação,
todas as famílias têm trabalho nas terras e nas fábricas que foram
construídas para transformar os produtos agrícolas. “Esta cooperativa e a
terra são o sonho de muitas gerações de trabalhadores que, numa dada
altura, tiveram a coragem de lutar por elas e de as conseguir”, garante
Esperanza.
À sala da Casa do Povo chega finalmente Gordillo, com uma hora de
atraso. Fala da marcha de amanhã e da importância de muitos estarem
presentes. “Para evitar provocações que possam difamar o carácter
pacífico do protesto, é preciso que esteja muita gente.” O presidente
garante que há gente que se sente ameaçada “por os trabalhadores terem
tocado no ponto da sacrossanta propriedade privada”. Revela ter recebido
várias “ameaças de morte”. As intervenções na assembleia são práticas,
como se temessem dar demasiadas informações aos órgãos de comunicação
social presentes. Este antigo professor de História, presidente da
câmara há mais de 30 anos, vestido de negro e, normalmente, de lenço
palestiniano, vai assentando num caderno as pessoas que amanhã às sete
horas vão apanhar as camionetas para a marcha, que começará por volta
das oito no recinto da feira de Homachuelos. Terminada rapidamente a
assembleia, a sala fica deserta, com as suas inscrições na parede, entre
as quais a citação do ideólogo da independência de Cuba, José Martí:
“Quem não tem a coragem de se sacrificar, deve ter pelo menos o pudor de
se calar perante aqueles que se sacrificam” – uma estranha frase para
encimar uma sala de discussão. Em Marinaleda, a participação é o
critério da democracia.
Às sete da manhã – é ainda noite frente à sede do ayuntamento, mas a
temperatura está nuns sufocantes 30 graus –, os mais de 150 inscritos já
fazem filas para as três camionetas. Com 30 minutos de atraso, arrancam
os veículos. Perto de mim vai Ruben. Vive em Marinaleda há seis anos,
apaixonou-se por uma rapariga da terra. Como 90% da população da terra, é
jornaleiro. Ao seu lado viaja a namorada do irmão, Cristina,
desempregada, que é da Catalunha. Quando chegamos pelas 8.30 da manhã já
lá estão 200 activistas do sindicato da zona. Com uma hora de atraso,
menos de 400 pessoas iniciam uma marcha pelas estradas. Tirando a
passagem de algum camião ou carro, ou alguns jornalistas que estão em
locais de passagem, a caminhada decorre numa espécie de deserto que é a
paisagem da Andaluzia entre povoações. A solidão dos marchantes não
impede o grito das palavras de ordem. “Não somos banqueiros, não somos
marqueses, somos andaluzes, somos jornaleiros”, é a mais repetida nas
horas do caminho. O sol vai-se tornando impiedoso. As pessoas da
carrinha da frente vão pousando garrafas de água na estrada, que todos
compartilham com alguma sofreguidão. Depois de 12 quilómetros de marcha
passa-se por uma propriedade com um portão de metal encimado por
brazões. Um forte dispositivo da Guarda Civil está junto à entrada. É
anunciado que, devido ao calor, faremos um descanso à sombra de umas
laranjeiras, 500 metros mais à frente. A que se seguirá uma assembleia. A
propriedade segue paralela à estrada e a concentração de todos faz-se
frente a uma estação que está antes do portão da propriedade. Quando a
marcha arranca, passa-se outra vez frente a ele. A Guarda Civil,
amolecida por uma hora de sol, encontra-se mais longe. Como por magia, é
dado um grito de ocupação. Cerca de metade dos marchantes corre para os
portões e passa por uma zona ao lado cuja vedação tem um providencial
buraco. Rapidamente, dezenas de pessoas entram. Atravessam um enorme
jardim. E detêm-se em frente ao Palácio de Moratalla. Aí toma a palavra o
porta-voz do SAT, Diego Cañamero (ver entrevista ao lado), que denuncia
que a propriedade, de uma nobreza que viveu à sombra do franquismo,
estava a ser transformada em hotel de luxo e que os seus proprietários
deviam dinheiro aos trabalhadores e empresas que tinham feito as obras.
“Vamos estar aqui pacificamente. Não tocaremos em nada. Isto não nos
pertence ainda e, se fosse nosso, também não tocaríamos”, garantiu.
Sánchez Gordillo toma de seguida a palavra para explicar que esta
ocupação simbólica serve para denunciar que, enquanto mais de um milhão
de andaluzes não têm trabalho, “os nobres, a classe mais inútil de
Espanha, continuam a deter grandes propriedades, grande parte delas sem
dar trabalho às pessoas da região”. Passados dez minutos chega a Guarda
Civil, que proíbe os jornalistas de fotografar o dispositivo militar,
dizendo que incorrem no crime de desobediência. Informa os sindicalistas
de que cercam a propriedade, que não entrará mais ninguém e que toda a
gente que sair será identificada para futuro procedimento criminal.
Acrescenta que espera uma ordem do juiz para desalojar os ocupantes e
que eles se “tinham metido com gente importante”. Começa uma longa
espera que acabará com a desocupação voluntária do palácio na manhã
seguinte. Os jornaleiros vão circulando à volta do complexo, admirando
as luxuosas instalações. Os mais novos encontram uma piscina e
banham--se. Os mais de 40 graus convidam ao mergulho. Pouco a pouco, até
os mais velhos perdem a prudência e entram na água. Os fotógrafos e as
televisões registam este momento simbólico da ocupação em que os mais
pobres se banham nas águas de um hotel de luxo. O porta-voz do sindicato
resiste, talvez ciente das leituras menos católicas do acto.
Indiferente ao possível aproveitamento está uma mulher de quase 70 anos.
Até há pouco, foi uma das ocupantes de uma herdade da Junta da
Andaluzia que o governo regional quer privatizar. Os jornaleiros do SAT
estão em guerra, neste momento, por essa propriedade de 500 hectares e
uma herdade do exército com 1200 hectares. Defendem que deviam ser
entregues aos trabalhadores porque estão subaproveitadas. Junto à porta
do palácio, Antonio posa para a fotografia ao lado da bandeira da
República. Já com uma certa idade, ostenta uma tatuagem de uma unidade
militar. Diz-me que estas acções são úteis. “Há três anos marchámos
pelos caminhos privados até Madrid, para termos o direito a utilizar
essas estradas. Levámos pancada forte da Guarda Civil, mas chegámos a
Madrid e a lei foi alterada”, afiança o jornaleiro.
Ao sair da propriedade ocupada no início da noite, sou identificado
pela Guarda Civil. Os locais saem mais abaixo, escapando ao registo.
Explicam-me que quem é identificado é condenado a pagar uma multa de 300
euros. Trinta ocupantes voltam de camioneta para Marinaleda. No dia
seguinte, a marcha começará às seis da manhã para quem sair da vila, e
partirá do palácio, que a assembleia decidiu desocupar às oito da manhã.
O objectivo da marcha será atingir a localidade de Pousada ao início da
tarde. Na véspera, a delegada do governo PP de Madrid na Andaluzia
pediu ao governo regional que pusesse Gordillo na ordem, “para pôr fim à
absurda palhaçada que causa dano à imagem da região e de Espanha”.
Converso na tarde seguinte com alguns dos jovens que participaram na
marcha. Ruben e Encarnación conheceram-se numa reunião sobre ensino
público na vila. Há seis anos que ele veio viver para a terra. A sua
casa, como a de grande parte da população, foi construída com apoio da
câmara. Paga, como toda a gente, 15 euros por mês. Quando acabarem de
pagar o que custou, a casa será deles. “Ao valor que a gente pagou foi
abatida a nossa participação no trabalho de construção”, informa Ruben.
Toda a gente tem trabalho na terra. Dantes vinha gente das aldeias
vizinhas trabalhar a Marinaleda; agora, com a crise na construção, o
trabalho concentra-se na terra e nas fábricas da cooperativa, mas é
distribuído por todos. Ensino e habitação são apoiados pela câmara. Tudo
é decidido por assembleia e nenhum dos eleitos da câmara recebe
ordenado. Manolo é irmão de Ruben. São naturais de uma localidade
próxima em que as tradições sindicais também são fortes. O pai é
dirigente sindical. Manolo namora com Cristina, originária da Catalunha,
que está desempregada. Com a crise e a luta das populações de
Marinaleda, “as pessoas, mesmo de longe, começaram a ter conhecimento de
que há formas diferentes de fazer as coisas”, afirma. Nem sempre isso é
garantia da consciencialização de que há uma alternativa, esclarece
Manolo. “Sou empregado num estabelecimento turístico de cinco estrelas. O
meu patrão acha que toda a gente de Marinaleda é ladra. O problema é
que, muitas vezes, o ponto de vista do patrão influencia os empregados”,
diz. Encarnación garante que o modelo de Marinaleda funciona, exige é
muito trabalho e participação. “Não há mais povoações a fazer, neste
momento, o que nós fazemos porque não conseguiram ocupar as terras.
Quando começámos, diziam que éramos loucos, mas os loucos conseguiram
fazer coisas. Mas não é fácil, porque a luta dá muito trabalho.”
Retirado DAQUI
1 comentário:
Dá realmente muito trabalho. É mais fixe lutar na praia e na esplanada.
Saudações!
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